Eu sempre fui sonhadora e extremamente sensível. Desde que me entendo por gente a minha existência se limitava a idealizar realidades fantásticas e chorar. Eu achava que todo mundo era igual, mas depois de muito tempo eu descobri que não. Eu chorava muito e quando era criança eu tinha certeza que tinha nascido da água da chuva, que pra mim era choro que brota do céu. As pessoas acham essas coisas bonitas ao mesmo tempo em que se compadecem: “tadinha, deve sofrer tanto!”. E até eu poder me aceitar enquanto mulher adulta (ainda é um processo), eu tive pessoas preocupadas me podando as asinhas de tempos em tempos até que eu, automaticamente pudesse sozinha me encarregar desse trabalho.
Eu nunca gostei muito das “coisas adultas”, e sempre os observava falarem sobre seus trabalhos com a convicção de que aquilo era uma punição “divina” pelo pecado de crescer. Aos 16, quando a adultescência estava dando sinais de quem em breve bateria à porta, eu entrei para a faculdade de Direito. E me formei nesse curso. Eu não sei como. Ou sei: Eu fui empurrando com a barriga, Assim bem ao estilo de como as pessoas adultas levam suas vidas. Ao fim dos 5 anos de martírio, eu me permiti não fazer nada, talvez pra digerir. Isso nunca pareceu promissor, confesso, mas eu disse pra mim mesma que era só até eu conseguir me encontrar. Sabe? Esses discursos dos quais pessoas de classe média podem se valer. O que eu não calculava era que o pretenso momento “zen” de auto-descobertas viraria terreno pra depressão fazer casinha. Eu fiquei presa lá e assim se arrastaram mais 5 longos anos.
Eu fiz 10 anos de terapia (desde os 16) e durante esses 10 anos eu fui pulando de terapeuta em terapeuta, testando novas abordagens e repetindo o mantra “eu não faço a menor idéia do que fazer com minha própria vida”, eu só sabia que eu gostava de criar coisas que eram maravilhosas na minha cabeça, sempre foi assim e que quando eu via coisa bonita eu chorava com a mesma intensidade de quando presenciava algo horrível, triste e violento. Uma ou outra terapeuta tentou me orientar que talvez eu devesse apostar nesse caminho, mas eu sempre soube que viver de arte e criatividade era sonho possível pra meia dúzia e é claro, eu não estava nela. Na verdade, nos 5 anos cavando o poço sem fim da minha própria cova em um relacionamento abusivo e com a auto-estima nula, eu me desconectei totalmente das coisas não-adultas, aquelas que me inspiravam na infância e que eu amava, embora não pudesse viver a partir delas. Um lindo dia, que só é lindo nessa narrativa pq na verdade não foi um só e sim vários, de vergonha, ansiedade e humilhação pública, eu dei um fim ao meu relacionamento e mudei de cidade pra fazer acompanhamento psiquiátrico. Ali foi apenas uma das minhas inúmeras mortes-renascimento, e nesse momento eu senti uma vontade enorme de desenhar. Pra vomitar mesmo, botar pra fora a angústia e ah! passar o tempo, claro! Porque quem convive com a depressão sabe: ela impregna todos os relógios da casa e age diretamente sobre a passagem do tempo fazendo uma hora durar dias, semanas, meses.
Eu cheguei aqui e fiquei muito cara de pau.
A verdade é: eu morro de vergonha da maioria (quase que absolutamente todas) as coisas que produzo, seja porque o tracinho é torto por eu não ter coordenação motora, ou porque eu desenho e às vezes até escrevo coisas que me fazem sentir nua na frente de todo mundo (sabe esse pesadelo recorrente da infância? Então. Minha vida!). Provavelmente eu vou sentir vergonha disso antes mesmo de ser publicado, mas como eu disse, eu me tornei cara de pau. Não sei se foi bem escolha ou aquilo que chamam de “Instinto de sobrevivência” porque eu não sei vocês, mas eu sou bicho e tenho instintos.
Quem pode, pode! Quem não pode, finge que pode e enfia a cara mesmo sem (ainda) poder
Chegou algum momento em que eu decidi ou me convenci de que eu não queria na verdade morrer, eu queria encontrar um motivo bom o bastante pra me fazer querer levantar da cama e comer, por exemplo. Alguém que já tinha me visto rabiscar algo torto e coloridinho me estimulou a mostrar pras pessoas, e eu fiz. Morrendo de vergonha, mas fiz. Alguém mais gostou de uma coisa ou outra, eu usava os desenhos como recurso poético pra desabafar sobre coisas pessoais que me sufocavam para pessoas que não conhecia e essas pessoas começaram a interagir comigo e a responder a esses relatos. Eu narrei pra mais de 600 pessoas numa rede social, incluindo familiares e amigos próximos sobre meu relacionamento abusivo. Eu já tinha tentado fazer isso de uma maneira sutil através de outro desenho, só meia dúzia de mulheres captou a mensagem, claro. E então eu descobri que os rabisquinhos tortos de alguma forma me faziam mais forte. Eu tentei fazer disso uma profissão, e é muito recente que passei a levar a sério. Ainda estou descobrindo diariamente que é ainda mais difícil do que eu imaginava. Estou engatinhando, dando meus primeiros passinhos em direção a conseguir alguma renda em decorrência daquilo que eu mesma produzo. Isso soa tão mágico na minha cabeça que eu até relevo as pedras no caminho, que não são poucas. Analisando agora, eu sempre desenhava na terapia casinhas fechadas com um caminho tortuoso de pedras que conduzia até a portinha. É muito difícil e trabalhoso, o retorno costuma demorar a vir e quando se tem depressão, então, você tem que todo dia repetir pra você mesma que vai cumprir aquelas tarefas nem que seja a última coisa que você vai fazer antes de amarrar a corda. (desculpa a referência). E é em cima disso que tenho criado a minha rotina cujo primeiro passo sempre implica em levantar da cama, nem que seja pra ficar sentada nela, editando fotos no computador. Eu espero que mais pessoas como eu consigam sentar na cama e mexer no computador, não é bem uma solução, né? Mas é algo, e se você analisar com jeitinho percebe que algo é melhor que nada.
Mas eu não queria encerrar isso de um jeito melancólico, eu queria falar pra você aí, pessoa estranha, que eu nunca estive tão fisica e mentalmente sobrecarregada – não posso mentir e dizer que acordo com o trotar dos únicórnios no fim do arco-íris, eu particularmente ainda não vi nenhum – mas que ao mesmo tempo estou feliz. (Isso não é muita coisa?) Não sei afirmar se confiante, é difícil exigir isso de alguém nas minhas condições, mas tô feliz. Eu não sei se dura, eu não sei se aguento o tranco. A gente nunca sabe muito bem essas coisas, acho eu. Mas até o último segundo, enquanto minhas faculdades mentais permitirem, eu sigo tentanto porque me tornei ainda mais hedonista nesse processo de auto-aceitação. E a satisfação que dá tentar (e o nível de desencargo de consciência) são enormes!